Amanhecer de um dia. Dois amigos iniciavam longa caminhada pelos estreitos, perigosos, desafiantes e gelados caminhos do Himalaia, de volta ao vilarejo que viviam.
Como costume de então, em vasilha de barro cozido para cada um, com tampa bem ajustada, encheram-nas com brasas bem ardentes e, rapidamente, cobriram-nas com pano grosso e prenderam-na ao corpo, por baixo de seus casacos de pele de iaque. Providência para ajudar o aquecimento do corpo.
Alegres, iniciaram a jornada.
Um tempo depois, viram um senhor, bem idoso, sentado ao lado de uma pedra, exausto, quase enregelado e sem forças.
Um dos amigos foi ao seu encontro para ajudar, enquanto o outro, preocupado com a distância que ainda faltava para o vilarejo e o tempo que as brasas ainda resistiriam para aquecê-lo, preferiu seguir o caminho, para o outro alcançá-lo logo mais.
Assim foi.
Sem muita demora, o outro amigo estava novamente ao seu lado.
E caminhavam, confiantes, apesar do avanço das horas e do aumento do frio.
Quilômetros adiante, um casal e dois filhinhos pediram auxílio aos viajantes, a fim de acenderem pequena fogueira, suficiente para aquecê-los e preparar alimento às crianças.
Prontamente, um deles, o mesmo da parada anterior, se dispôs ajudar, e o outro protestou, diante do risco de abrir a vasilha para retirar brasa e todos ficarem sem aquecimento.
O amigo não se incomodou com a fala e o risco. Foi ter com a família em desamparo.
O outro seguiu adiante mesmo preocupado com o que fazia seu amigo.
Não tardou, alegres, estavam novamente juntos, firmes na jornada.
Não faltava muito, era quase noite, mas ainda restava boa distância a ser vencida.
Aquele que não parou em nenhum momento, agora apresentava certo silêncio e demonstrava preocupação maior.
O outro amigo, sempre atento, perguntou-lhe o que se passava.
– Sinto que a minha vasilha de aquecimento esfriou, respondeu-lhe.
O amigo altruísta disse-lhe:
– Sem problemas, paremos ali ao lado, vamos resolver isso já, pois há prenúncio de forte nevada.
– Mas como fazer? o sempre preocupado amigo resmungou. Afinal, assim como a minha vasilha, a sua também já deve ter consumido todo o calor.
– Seria assim, sim, não fossem os imprevistos do caminho e os auxílios prestados por mim. Em cada momento em que parei, utilizei-me das brasas que carrego para atear fogo e socorrer os que nos pediram auxílio. Ao tempo em que fiz fogo para eles se beneficiarem, eu, por minha vez, renovei minhas reservas com novas brasas. Tenho aqui suficiente para mim e para você. Fique tranquilo. Renovemos as brasas juntos, para você e, por que não? para mim também, mais uma vez.
E falou mais:
– Veja você o quanto acontecimentos aflitivos fazem-se experiências iluminativas, e confirmam que o bem maior fica com aquele que o pratica. Isso nos traz crescimento interior. Figuradamente, ajudei a aquecer outras pessoas, mas ajudei-me a mim próprio a me aquecer, e, ainda, agora posso voltar a distribuir aquecimento.
Continuou o pensamento:
– O sofrimento dos que nós encontramos nessa caminhada de hoje, eu, você e aqueles com os quais estivemos na estrada, não é consequência da caminhada, é, contrariamente, caminhada que nos oferta consequência. A caminhada demonstrou que o sofrimento se faz seiva estimulante, a convidar-nos a superação das circunstâncias e a autossuperação.
Veja você:
– Nós dois auxiliamos (não excluiu o amigo da experiência gratificante) e agora usufruímos das benesses que o próprio auxílio (fogo) permitiu colhermos (novas brasas). O velho, ao despedir-se, agradeceu-me e disse que, arrependido, retornaria à sua casa, que não estava tão longe, e, reconhecido de sua pouca força, se desfaria do orgulho e aceitaria a companhia de filho mais forte, para retomar a viagem, oportunamente.
O pai da pequena família, enquanto era providenciada fogueira e se encaminhava o preparo dos alimentos, comentava, de olhos firmes e emocionados mirava a esposa, que aquele momento de angústia, preocupado com os filhos, com o frio, com a fome, lhe abriu o coração para lhe aclarar o valor moral da esposa e a joia preciosa que é a mãe de seus filhos amados, pois, mesmo diante de anunciada tragédia e sem aparente solução, ela manteve-se firme na sua fé e dizia-me para confiar no Auxílio do Maior, que a ninguém desamparava.
E mais, seu exemplo me fez reconsiderar a minha fé, até então titubeante, e concordar com ela, que sempre repetia para mim que fé em uma Supremacia Universal é natural em todos, pois os gérmens dessa confiança estão nos corações, e aguardam pelo despertar das consciências, quando então, despertos, sentiremos, conscientes, a religiosidade que rutilará e iluminará o pensar, o sentir e o agir, independe de formalidades e credos especiais.
Hoje foi o meu dia de acordar.
Antes de retomarem a marcha, concluiu:
– O sofrimento humano deve ser examinado sob novo prisma. Não é ele que abre a ferida, ele é o cautério que cura. Não é a causa das angústias, mas é o alerta para renovação de ânimo.
A luta pela superação faz crescer o conhecimento, permite novas conquistas, aquisição de novas habilidades. Completa nossa formação como seres sencientes que somos, ativa nossa capacidade de sentir emoções nobres de forma consciente, forma diretrizes seguras para ações edificantes.
O sofrimento é a manifestação visível do mal invisível que pede remédio.
– Como assim? perguntou-lhe o amigo.
– Uma perda sofrida, de qualquer natureza, traz ensinos variados. Aquela dor sentida, nos permite conhecer a essência da compaixão.
Aquela doença que nos faz parar, leva-nos perceber o valor da vida e aos cuidados com o bem-estar.
Aquele abandono de um familiar abre um espaço vazio que demonstra que o amor é o laço que une e o único fator capaz de preencher a vida.
A luta sacrificial que empreendemos, que nos leva ao êxito, por compreensão e compaixão, nos faz atender outras pessoas, que também lutam, nem sempre com a mesma força que temos, nem com as mesmas oportunidades, e estendemos deliberadamente as mãos para ajudar.
Diante de incertezas, descobrimos potencialidades adormecidas em nós que promovem acertos.
– Pensemos mais, meu amigo, continuou.
– As facilidades materiais em demasia, traz encantamentos, distrações, busca desenfreado pelo gozo fácil, quase que uma hipnose, causam, geralmente, indiferença para com a própria vida e para com os outros, a soberba, a sensação – falsa e destrutiva – de que se é senhor no mundo. Egoísmo exacerbado onde não tem para ninguém…
– Mas o sofrimento é constrangedor, interveio o amigo ouvinte, nos revela tão frágeis frente as agruras da vida e diante de nós mesmos, que duvidamos não só de nós, mas ainda da existência de Deus.
– Depende do seu ponto de vista, aduziu o outro. Se nos entregarmos ao sofrimento, às tribulações, às vicissitudes, sem resistência, que somente a resiliência dá, será como cair num buraco e nos vermos no fundo do poço sem corda para subir. A depressão que nos acometerá, nos manterá na escuridão da inação, de mãos atadas para qualquer iniciativa reparadora.
A propósito, vejamos uma figura metafórica para quebrar um pouco a densidade que damos à palavra “sofrimento”, por vê-lo como algoz:
“- Certa feita, duas rãs que moravam numa fazenda, distraídas, caíram em baldes com leite da recente ordenha das vacas.
Cada uma num balde.
Uma delas choramingava a desgraça, anunciava que morreria afogada, por mais incrível que parecesse.
A outra estava calada e atenta à situação. Não se dava por vencida.
A lamurienta começou a ouvir o que vinha do outro balde: som de quem batesse palmas, alegremente. Curiosa perguntou o que acontecia. Não obteve resposta. Percebeu que nem tinha sido ouvida, tal a bateção de mãos e patas, além do canto.
De repente, depois de um tempo não percebido, assustada e surpresa, viu sua amiga de infortúnio, em pé, na beirada de uma ripa, ao lado dos baldes, para fora do balde.
Não se conteve e aos gritos perguntou como tinha sido aquilo.
A outra, sorridente, disse-lhe:
– Minha amiga, a sua tristeza faz com que suas lágrimas aumentem o problema e não lhe deixem ver soluções. Faça como eu, alegre-se, cante, dance, sapateie muito, bata suas patas incansavelmente no leite… ele logo virará manteiga, como no meu balde. Aí então, faça o que você tanto sabe: salte para fora. Simples assim.”
– Moral da história, arrematou o amigo, jocosamente: se você cair num balde de leite de problemas, bata seus pés e cante alto, até que o leite, que seria o problema, vire manteiga-solução e você possa saltar para fora, ao construir apoio e firmeza no que era incerto e temerário…
Voltemos ao assunto agora, disse.
– Vamos olhar a questão sob outro ponto de vista, onde o sofrimento não é o vilão da história. Quando não podemos mais mudar uma situação, somos desafiados a mudar a nós mesmos. Afinal, não somos produto das circunstâncias, nós somos resultado de nossas decisões, de nossas escolhas. Se não está em nossas mãos mudar uma situação que nos causa dor, sempre poderemos escolher a atitude com que encararemos esse sofrimento. Acolhê-lo ou não, é opcional, mas só o acolhimento fará luz e diluirá as sombras do pessimismo e do derrotismo.
– E acrescento ainda, o que é sabido por todos, que existem sim coisas ruins em nossas vidas e não temos como deixar de aceitar este fato. Porém, diante das adversidades, ao sabermos que elas vão existir, que são parte da vida e que se apresentam como lições que visam nossa melhoria, devemos lutar pela nossa madureza emocional, psicológica, espiritual, com esforço por algo que valha a pena, que dê sentido à nossa existência, que construa bem-estar. O cavaleiro dos contos de fada não se põe em combate com o dragão sem a armadura, escudo e as armas adequadas.
Sem interromper, prosseguiu:
– O ser humano não é completamente condicionado e definido, pronto e acabado. Nós definimos a nós mesmos, seja por ceder às circunstâncias, seja por nos insurgirmos diante delas. Em outras palavras, somos, essencialmente, dotados de livre-arbítrio. Não existimos simplesmente como autômatos, passivos, pré-programados, pois sempre podemos decidir como será nossa existência, o que nos tornaremos no momento seguinte.
A diferença entre uma pessoa que sabe como superar seus problemas e adversidades na vida – e faz do limão uma limonada, ou do limão um pomar – e uma pessoa que não consegue essa superação, é que a primeira é uma pessoa que decide, que escolhe ser uma coisa ou outra, a que for melhor para ela, apesar das condições em que ela vive. Não faz de sua vida um problema, faz do problema um desafio para aprender a bem viver.
É como um diamante bruto que se entrega com resiliência à lapidação, e logo reluz todos seus quilates preciosos, rutilante, e se põe a expressar todo o seu valor interno, que antes estava coberto, como se não fosse o diamante que é. Sempre devemos enfatizar que o diamante não veio a ser, já era e sempre foi e continuará a ser. Apenas revelou-se. Despiu-se das sobras inúteis.
– Angústia, vicissitudes, tribulações, sofrimentos, não são obstáculos ao alvorecer da chegada da luz de nossa renovação para melhor; se, obviamente, os encararmos face a face, não como adversários, nem como sensores de fragilidades, mas como sinais de alerta que balizam os caminhos e sinalizam por onde não ir, neles veremos apostilas que nos chegam, com notas complementares aos aprendizados que o mundo nos dá, comentou e seguia adiante, junto com o amigo, em direção ao vilarejo.
Mesmo a passos largos, prosseguiu com seus comentários, afinal, essa fala ajudava o tempo passar.
– Um mestre e seu discípulo iam conversavam estrada afora!
– Não continuarei mais meus estudos sagrados. Moro numa pequena casa com meus pais e meus irmãos, e nunca encontro as condições ideais para concentrar-me no que é importante e aprender como desejo.
O mestre apontou o Sol e pediu que seu discípulo colocasse a mão na frente do rosto, de modo a ocultá-lo. O discípulo fez isto.
Então o mestre disse:
– Sua mão é pequena, porém conseguiu cobrir por completo a força, a luz e a majestade do imenso Sol. Da mesma maneira, os pequenos problemas conseguem dar-lhe a desculpa necessária para não seguir adiante em sua busca espiritual. Ninguém é culpado da própria incompetência. Assim como a mão tem o poder de esconder o sol, a mediocridade tem o poder de esconder a luz interior. Não deixe que isso aconteça. Devemos dedicar grande valor às oportunidades de crescimento espiritual real, com aproveitamento total de todas elas.
E o amigo comentarista falou, em continuidade:
– Percebe, meu amigo, que falo para você de autodescobrimento? Ato contínuo a cada progresso alcançado em nossa autodescoberta, desponta em nós a humildade perante a vida, e nenhum sofrimento representa postura humilhante, porque os reveses ensinam e, se bem aproveitados, facultam a irradiação de valores novos aprendidos.
Aquele que se conhece, sabe do que é capaz e quais recursos dispõe e pode utilizar para o desempenho das tarefas e funções que lhe cumpre executar, diante da razão e objetivos da vida, pois aceita-as, as tarefas, como parte do processo existencial, no qual está inserido.
Essa compreensão dá-lhe alegria, dignidade, enriquece-o de entusiasmo a cada nova conquista, e traz nova perspectiva e planos da próxima vitória sobre si mesmo. Cresce intimamente, sem cessar.
Tudo começa na mente, no coração, e aí estão as matrizes das próximas ações.
Portanto, reprogramarmos a mente é medida de urgência. Mudarmos hábitos viciosos, sustentados por acomodação psicológica, por evasivas e fugas existenciais do ego, por máscaras comportamentais, é tão necessário como o fogo para suplantar o frio, o ar para manter a vida.
Ampliar o campo mental é alargar opções de caminhada e escolhas de rumos, e facilita visualizar aqueles que nos conduzirão à felicidade.
– Ei, olhe ali adiante, falou radiante. Aquela fumaça e aquelas luzes são nossos lares! Finalmente, chegamos! Mais alguns passos e estaremos ao abrigo do lar, sob o amparo do calor do fogão, acolhidos pelos familiares, a saborear sopa suculenta e bem quente, e mirar o aconchego do cobertor, após um banho quase que escaldante…
– Sim, concordou o outro amigo. Aproveitemos o momento e agradeçamos ao Todo as forças que nos foram dispensadas, e as luzes que pudemos colher das experiências que a vida nos permitiu no dia de hoje.
Aprendi que ninguém pode se colocar em nosso lugar e sofrer por nós, então, concluo, nossa oportunidade renovadora se manifesta na atitude que adotemos diante do sofrimento.
Todos nós temos uma razão de ser, mas, às vezes, não temos conhecimento dessa razão. Se queremos uma missão na vida, já a temos: encontrar a razão de viver.
Se uma pessoa não consegue encontrar significado em seu sofrimento, viverá em desesperança. Mas se formos capazes de encontrar sentido na adversidade, ela transformará nossos infortúnios em fator de crescimento moral, de maturidade psicológica, superação e realização.
Também aprendi, com seu exemplo, meu grande amigo, que nossas ações diárias é que fazem de nós versão melhorada de nós mesmos.
– Oxalá seja sempre assim todos os dias. Somos consciências pertencentes à grande Consciência Cósmica. Sejamos seu fiel reflexo em todos os momentos.
Despediram-se. Cada um adentrou em seu lar.
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