DESAPRENDER PARA APRENDER …

O trem começava a movimentar-se.

Deixava a estação da pequena cidade, como o fazia diariamente, para levar alguns de seus residentes até a estação central em grande cidade próxima, onde trabalhavam.

Final de cada dia, repetia-se a operação de retorno, e os trazia de volta para seus lares.

Quase todos se conheciam entre si, pela proximidade de vida em cidade pequena e em face de viagens comuns nos diversos dias da semana.

A distância era vencida sem que o tempo fosse percebido, pois o encontro era aproveitado para conversas animadas e troca de ideias e considerações sobre a vida, no geral, inclusive até para se jogar conversa fora.

Janete, senhora de meia idade, veio sentar-se em banco frontal ao que já estavam acomodadas Marie e sua filha Louise.

Trazia na mão um livro para leitura.

Depois dos cumprimentos e troca de palavras motivadas pelo reencontro, Louise, delicadamente, comentou: – Sra. Janete, desculpe-me a curiosidade, mas não pude deixar de ler a frase na capa do seu livro, logo após o título, pois que me chamou a atenção. Do que trata o livro?

Janete olhou para o livro e leu em voz alta: A própria mente desencaminha a mente; acautela-te contra a mente.

Com um sorriso aconchegante nos lábios, Janete respondeu: – Louise, o livro traz diversos koans, cada um com seu rico conteúdo, que vem enfeixado, figuradamente, num fino e pouco transparente papel de presente, com um delicado laço.

A pouca transparência do papel cobre o conteúdo e nos permite vislumbrar palidamente o seu interior, mas não nos permite saber exatamente o seu teor.

O texto é escrito de modo que o seu “papel-roupagem” é intencionalmente intrigante e de pronto nos prende a atenção – como se deu com você -, mas cabe a cada pessoa, pela sua vontade, desfazer o laço e acessar delicadamente o interior do pacote.

Um koan é uma narrativa, diálogo, questão ou afirmação no budismo zen, que contém aspectos e proposições, cuja solução não poderá ser atingida apenas pelo pensamento intelectual.

Precisamos ir além do discurso racional.

Eles são as portas para a verdade e para a libertação. Mas, não são portas já abertas, mas portas a abrir com a chave da intuição.

Desta forma, o koan tem, como objetivo, propiciar a iluminação espiritual de quem penetra seus ensinos.

É usado para fins meditativos.

Um mestre Zen nada ensina com respostas prontas.

O seu objetivo é levar o seu discípulo a “desaprender” o que sabe, a ficar livre de qualquer filosofia.

Para isso ele se vale de um artifício pedagógico, a que se dá o nome de koan.

É como uma rasteira que o mestre aplica na linguagem e raciocínio pragmático do discípulo e faz com que ele caia nas rachaduras de seu próprio saber.

Abstração é a linguagem sem letras e palavras.

Desaprender para aprender.

O que vemos não é o que vemos, senão o que somos.

É preciso ser diferente para ver diferente.

O poeta Alberto Caeiro nos ajuda com suas ideias:

(…)

Não basta abrir a janela para ver os campos e o rio. Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores.

Para ver as árvores e as flores é preciso também não ter filosofia nenhuma.

Procuro despir-me do que aprendi,

Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,

E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,

Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, desembrulhar-me e ser eu…

O essencial é saber ver.

– Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!), Isso exige um estudo profundo,

Uma aprendizagem de desprender…

Ao se pensar mais detidamente sobre a mente e o comportamento, se conclui que a memória obriga a se viver vendo o mundo da forma como foi visto num dia passado.

Sob esse aspecto, a memória faz de cada um, prisioneiro do passado, e não o deixa perceber a eterna novidade do Mundo.

É preciso esquecer o que se sabe a fim de ver o que não se via.

Esquecer não é apagar. É não considerar apenas o que já se sabe.

Se conseguirmos desaprender nossas memórias, então estaremos livres para ver um mundo que nunca havíamos imaginado.

– Faz sentido para você, Louise? – perguntou Janete.

– Sim, muito, ela respondeu.

Mas mantinha o olhar pensativo e brilhante, como se dá com aquele que é visitado pelo entusiasmo de uma ideia nova, que provoca emoção pela resposta há muito esperada.

– Louise – continuou Janete -, o livro não se propõe a fazer prosélitos dessa nobre filosofia budista, que merece ser muito bem conhecida e vivenciada, independente de convicção religiosa particular que se tenha.

A propósito, em termos de religiões, há que se transcender as bandeiras, rumo ao fundamental, que é se ter religiosidade no coração, na consciência.

Retira-se de sabedoria antiga, lição para a vida moderna.

O modelo social vigente encoraja a ambição, posse, controle de pessoas, sucesso a qualquer preço, prazer pelo prazer de sentir até a exaustão, cada um por si, não estar e só ficar.

Vêm-se recantos sociais ricos de coisas e abundância em desperdício, e outros onde falta o essencial para a sobrevivência.

Encontram-se ricos palacetes, paupérrimos de afeto e sem laços de família.

Há templos suntuosos, erigidos em nome da imortalidade, em torno dos quais seus adeptos vivem o terra-a-terra, só conhecem o “eu” e o “meu”, e em seus vocabulários não se contempla o “nós”.

Existem tradicionais e seletas escolas que há séculos ensinam, com esmero e competência, a “ter” e a “ganhar”, mas incompetentes em matéria que ensine a “ser”, que demonstre o “eu verdadeiro”, que disseque a vida até o âmago do seu verdadeiro sentido.

Formam o profissional de sucesso, mas não o homem de bem.

Depara-se com a pujança da indústria farmacêutica, enquanto muitos morrem por não terem acesso ao remédio.

Há poderosos comerciantes que preferem jogar caminhões de leite nos rios, a fim de causarem carestia e gerarem aumento de preços, mesmo diante daquelas crianças que perecem por não ter um copo sequer de leite, todos os dias.

Vive-se o limiar do esgotamento das forças, por mal empregadas, iludidos de que, ao se conseguir mais do mesmo, estas serão repostas e mais vigorosas.

Esse estilo de vida merece ser repensado, por vários fatores.

Não seriam precisos muitos mais argumentos, diante das estatísticas a respeito da depressão, transtorno de ansiedade e transtorno de sono, que enredam milhões de seres em suas redes.

A luta pela sobrevivência é inerente a existência humana.

Sem questionamentos.

Mas merece questionado o limite entre o necessário e o supérfluo.

Entre o que se pode e o que se deve fazer em nome do bem-estar.

A vida naturalmente vivida contém sofrimento necessário.

Difere da vida com sua segunda natureza, artificial, ilusória, que gera sofrimentos criados.

E Janete se apressou em acrescentar: – Exemplo, minhas amigas, dessa afirmativa, para melhor entendimento.

Em várias ocasiões, eu ou vocês, viajamos nesse mesmo trajeto, cansadas, exaustas mesmo, por termos passado a noite em claro em face de alguém enfermo em casa ou outros contratempos na família.

No entanto, diante do compromisso do trabalho e do necessário apoio ao sustento da família que partilhamos, exigia-se a ida.

Pela baixa resistência orgânica e o clima frio, por consequência, nos vimos acometidas, em vários momentos, de uma enfermidade qualquer, com grande sofrimento pessoal até a superação.

Eu chamo esse exemplo de sofrimento necessário.

Agora, sentir o mesmo cansaço, diante do mesmo compromisso e esforço, adquirir a mesma enfermidade hipotética, só que decorrente de exaustão por noites em claro passadas em festividades, jogatinas, curtição sexual, trará, sim, sofrimento, que, nesse caso, chamo de sofrimento criado.

Uma simples frase, Louise e Marie, que chegue ao coração de alguém que esteja ávido por luzes que sinalizem caminhos renovadores, modifica o sentido do viver.

É a proposição também dos koans.

Desse ensino-alerta: A própria mente desencaminha a mente; acautela-te contra a mente, podemos tirar, também, que a própria mente encaminha a mente.

O reto pensar nos leva ao reto viver.

Para isso, a diretriz é se aplicar em alcançar a quietude da mente, restringir os sentidos aos seus propósitos, pois, é claro, que aprendemos pelos sentidos, mas há circunstâncias em que o aprendizado iluminativo só chega pelos sentimentos.

Percepção, entendimento, compreensão e aceitação, são fatores íntimos e constantes da equação da vida, que tem como resultado dessa combinação, o equilíbrio!

Equilíbrio é o caminho do meio, o caminho de ouro, que é caminho de menor resistência, encontrado no ponto de máxima tensão entre os opostos.

Equilíbrio se conquista, não nos chega por obra do acaso.

Tudo começa na mente.

A dualidade compõe os elementos comparativos para que se dê o aprendizado.

Passado e futuro.

Ser e ter.

Por exemplo, uma corda, ao ser puxada nas duas extremidades por forças iguais, terá seu ponto máximo de tensão no centro, onde a tensão será zero.

Muitas pessoas são sequestradas pela rigidez de suas mentes, por conseguinte, de seus comportamentos.

Acorrentam-se em um dos polos.

Ver o mundo em categorias e caixas separadas, limita nossa percepção e nos vemos presos em nossas ideias e de como as coisas são ou deveriam ser.

O universo está em mudança.

Nem sempre nossas ideias a respeito o acompanham.

Uma forma mais confortável e nutritiva para a mente é a flexibilidade.

– O trem já diminui a velocidade, alertou Janete.

Estamos quase no nosso destino.

Da estação central, cada um de nós dos que estamos nesse trem, seguiremos caminhos diversos, naturalmente.

Nós três, minhas amigas, sigamos aquele que nos leve à felicidade.

Lembremo-nos durante o dia: aprender a desprender…

E para concluir, por que não outro koan?

Não siga o passado; não se perca no futuro. O passado não existe mais; o futuro ainda não chegou. Observando profundamente a vida como ela é, aqui e agora, é que permanecemos equilibrados e livres.

Agora, chegamos.

– Marie e Louise: paz!

E até logo mais, quando da volta. Estejamos juntas, sempre.

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