A UTILIDADE DE VIVER

À beira do rio Tâmisa, que banha Londres, quase todas as manhãs, ao amanhecer, lá se via o jovem lentamente que recolhia entulhos, latas, copos plásticos, máscaras de prevenção de contaminações e outras quinquilharias que ali eram arremessadas ou trazidas pelas águas.

Intrigado com aquilo, um morador das redondezas, que há muito observava a persistência do jovem, aproximou-se com cordialidade.

Foi recebido com simpatia e a conversa fluiu com facilidade.

O morador disse da sua surpresa pela regularidade da presença e do trabalho cansativo de recolher o lixo, e não deixou de perguntar:

– Você faz a coleta para reciclagem e venda, meu jovem?

Para maior surpresa, o rapaz respondeu, animado: – Não senhor. Recolho pela disposição em ser útil ao meu viver.

E, sem dar maior atenção ao ar de espanto do morador-vizinho, continuou a narrativa: – O que eu aqui recolho, logo adiante repasso à algumas pessoas para que deem o destino que lhes aprouver. Sei que eles reciclam, sim, e vendem, e complementam sua renda familiar, o que para mim é prazeroso, pois agrega na utilidade de meu viver.

– Mas, só isso? Indagou o vizinho, e adiantou: – Amanhã haverá mais lixo e depois de amanhã também. É interminável. Além do mais, de quando em quando a zeladoria municipal faz coletas ao longo das margens.

Sorridente, e enquanto caminhava sem deixar de coletar e o seu curioso vizinho seguia ao seu lado, respondeu:

– Senhor, pelo lado material, o pouco que retiro faz diferença ao meio ambiente, uma vez que sabemos do grande empenho das autoridades em despoluir o rio.

Se há quem não respeita o entorno em que vive, de minha parte emprego um pouquinho do meu dia em benefício geral.

Aqui se encaixa bem a afirmativa do antigo pensador – Heráclito -, que diz: “O caminho para cima e o caminho para baixo são um único caminho.”

Nesse mesmo pedaço da margem do rio, uns agem com desrespeito, outros com respeito.

Se há quem não consegue compreender que o ser humano é parte do sistema ecológico, que ele é a Natureza, assim como os animas, os rios, as matas etc., e agride o rio que lhe beneficia os dias, não se pode esperar que ele tenha acordado para o real significado existencial, já que nem avaliou o que seja vida.

Pessoas assim, sobrevivem.

Eu, de minha parte, busco bem viver e integrar-me com tudo e com o Todo.

Olhou ao seu companheiro de caminhada e de diálogo, com certo ar de presença-ausência, de quem olha para lugar nenhum, e, com sorriso franco, disse mais:

– Não digo isso por questão filosófica ou para fazer teoria em meus momentos de folga-útil.

Para além das latas vazias que coleto, eu realizo em cada coisa que junto a manifestação prática de valores internos que já identifico em mim, como, solidariedade, fraternidade, honestidade, fidelidade, respeito.

Eu lhe falei, caro vizinho, um pouco antes que “pelo lado material”, eu retiro entulhos, mas, o essencial do meu gesto, para mim mesmo, está no seu sentido extrafísico, que me faz sentir humano em processo de humanização, o que faz toda a diferença.

Essa é a realidade existencial de todos, necessariamente não percebida por muitos.

Aprimorar qualidade das habilidades que se tem, não é o mesmo que se esforçar por desabrochar de valores humanos.

– Meu jovem amigo – posso chamá-lo assim? – quando você diz “sentido extrafísico” do seu gesto, você refere a algo espiritual, sobre espiritualidade, ou atitude religiosa?

– Para lhe responder, me permita reprisar anotação de Fritjof Capra e Pier Luigi Luisi, que está no livro A Visão Sistêmica da Vida: “A espiritualidade é uma experiência humana muito mais ampla e mais básica do que a religião. Ela tem duas dimensões: uma vai para dentro, ou “para cima”, por assim dizer, e a outra vai para fora, abraçando o mundo e os seres humanos nossos companheiros. Qualquer uma dessas duas manifestações da espiritualidade pode ou não ser acompanhada pela religião.

Assim, quando dizemos que cientistas como Einstein ou Bohr eram almas espirituais, queremos dizer que eles eram animados por um vigoroso anseio para se aproximar, ou talvez até mesmo para se identificar, com os mistérios do Cosmos.

“Por outro lado, quando vemos pessoas como Gandhi ou Martin Luther King como seres espirituais, queremos dizer que eles estavam expressando por meio de suas vidas os ideais superiores de uma humanidade melhor.

Nesses casos, há uma união das dimensões interiores e exteriores da espiritualidade e podemos falar a respeito de uma “espiritualidade leiga”, uma maneira de ser espiritual sem a necessidade de estar associado com uma religião em particular.”

Não qualifico a minha ação, que é simples e espontânea, como atitude religiosa.

Considero que a descoberta do significado da vida – que deve ser buscada por todos – é fundamental para o bem viver, porque dá sentido à luta e ao enfrentamento dos desafios que surgem frequentemente, e convida o indivíduo ao avanço e ao crescimento interior, o que nos integra às coisas sagradas, num sentido amplo.

Por exemplo, nos integrarmos à Natureza é depositarmos respeito, zelo, cuidados, e acaba por nos fazer a considerar que o Cosmos também faz parte da Natureza, pois interdependemos de tudo.

Ao aprofundar esse entendimento, a visão se amplia e, com um mínimo de lógica, concordaremos com Voltaire: “Turva-me o universo e não posso imaginar que exista este relógio e não haja um relojoeiro”.

Essa integração com o sagrado, como o é a vida e os valores humanos, por exemplo, aqui não entendido como artigo de fé, mas como constatação de sua essencialidade existencial, é a religiosidade da consciência, que difere do ser religioso, por dele sobressair e, ao mesmo tempo, lhe ser inerente.

Sobressai, uma vez que no grau de ser religioso – fruto de formidável sistema religioso -, se trabalha por ser. No estado de religiosidade, já se é.

É inerente, pois o religioso trabalha por alcançar a religiosidade.

As atitudes de cada um é que demarcam o seu sentimento religioso.

Viver o seu sentido existencial, encontrado somente sem o véu das ilusões, é uma forma de religiosidade, que, independentemente de coisas e de lugares, de circunstâncias e de posses, promove estados interiores de bem-estar, que aciona o feixe de emoções superiores, estimula continuado esforço nos empreendimentos evolutivos ao encontro do Fulcro gerador da vida.

Tem tudo a ver o dizer de Heráclito, que “é necessária a necessidade da realidade”, não é mesmo?

– Sim, meu amigo – comentou o visitante e acrescentou:

A sua colocação do “sentido extrafísico” de sua atitude, me leva a concluir que nossa completude para “ser” pede metas transpessoais, além do dia a dia dedicado ao “ter”…

– Sem dúvida. Lembro-me de citação de Johann Goethe: “A mais nobre alegria dos homens que pensam é haverem explorado o concebível e reverenciarem em paz o incognoscível”.

O esforço para se encontrar o significado existencial e seu propósito de vida, passa pelo autoconhecimento, que descortina a razão de ser da vida, a utilidade de viver que contempla o equilíbrio experiencial entre o “ter” e o “ser”, além das incontáveis possibilidades ao nosso alcance para nos tornarmos felizes.

Sem o sentido da vida, sem um porquê, não há pelo quê! Resta um vazio existencial.

As propostas filosóficas, éticas, morais, religiosas e humanitárias vêm ao encontro dessas necessidades, a fim de alterarem a situação atualmente vigente, em que coisas meramente materiais são os únicos objetivos de toda atividade humana.

O entendimento da amplitude da realidade existencial, faz com que cada um de nós passe a trabalhar pela qualidade de vida e não apenas pela conquista de coisas.

O despertar da razão e dos valores do ser nos manterá na busca do fim pelo qual então anelamos: a felicidade!

Bem, meu amigo-vizinho – posso chamá-lo assim? -, preciso passar adiante o resultado da coleta do dia, cumprindo, assim, a parte tangível da utilidade de viver, pois a intangível eu colho a cada momento da minha caminhada.

Hoje, diga-se logo, a parte intangível do viver, enriqueceu-se com a alegria do convívio e da conversa que você – posso me referir assim? – me propiciou.

Ambos sorriram, abraçaram-se como amigos que se reencontram e despediram-se.

Foi quando o jovem disse: – Amanhã eu estarei aqui, novamente.

E o vizinho se apressou em prometer: – E eu também …

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